Andando de pés descalços no calor
das ruas de Goiânia, uma figura raquítica sorria para a noite. Enquanto
caminhava, via-se claramente a repulsa dos "cidadãos de bem" ao seu
estado. Mais que isso: via-se o medo de que ele se aproximasse. Era jovem (apesar
de aparentar ter o dobro da idade), olhos claros, cabelos agradavelmente
cacheados, nariz borrado de foligem. As mãos estavam escurecidas, sujas,
calejadas pela vida nas ruas. Roupas maiores que o corpo, pés feridos, unhas
irregulares, pretas. Apesar de maltratado, seu sorriso era irrefutável. Sua
tristeza também.
Enquanto subia a rua dez, pedia aos
que encontrava algum trocado para completar um lanche. Não retribuiu um “não”
sequer com dissabor: pagou a todos eles com um bom sorriso e um “muito
obrigado”. Parou então diante de um casal, que também comia – como os outros a
quem abordou – em um dos pit-dogs entre a praça Cívica e a Universitária:
_ Boa noite. Desculpa
incomodar vocês. Eu sei que querem namorar um pouco, mas vocês teriam algum
dinheiro para completar um sanduíche? Qualquer quantia. Falta só um pouquinho.
_ Claro que sim. E
você não incomoda não – disse o rapaz -. Isso é tudo o que tenho agora. É o
troco do sanduíche.
_ Bom demais. Dá pra
comprar até um melhor do que eu estava planejando. – e foi ao balcão, pedir o
seu.
Fernando desconfiou, por um momento,
que o jovem usaria o dinheiro para comprar drogas. Não conseguiu deixar de
notar as queimaduras típicas na ponta dos dedos, mas sentia que precisava acreditar
no garoto agora. Sua esposa e ele ficaram aliviados de não terem cometido o
mesmo equívoco dos outros.
Os três aguardavam seus sanduíches
chegarem, enquanto conversavam:
_ Sou morador de rua
desde os treze. Eu que decidi fazer isso, porque não queria dar trabalho pra
minha família. Fugi de casa pra não ficar dando desgosto para meus parentes em
casa.
_ Por quê?
_ Porque comecei a mexer
com droga. Quando eu percebi que estava viciado demais saí de casa. Antes que a
droga me fizesse cometer alguma besteira contra minha família, que começasse a
roubar e vender as coisas de dentro de casa pra fumar.
A maioria dos usuários de drogas
começa com lícitas ou ilícitas que podemos considerar como “leves”: cigarro,
bebida, maconha. Depois, gradativamente, se arrisca em outros tipos de
entorpecentes mais nocivos. Qual e o quão nocivo depende muito do país em
questão. No Brasil, o campeão disparado de vendas e destruidor de lares é o
crack. Trata-se dos detritos resultantes da fabricação de cocaína. Uma pedra varia
em tamanho e efeito, dependendo da forma como se misturam os elementos do
refino ao restante. Formadas as pedras, são empacotadas e vendidas. Seu efeito
é rápido: diz-se que qualquer dose de consumo dela causa dependência química
instantânea. Por isso, o crack pode impelir o usuário a fazer o que foi
descrito pelo jovem de rua.
_ Você prefere a rua
ou sua casa?
_ Minha casa... – e o
olhar ficou distante. – Eu tenho casa, na verdade. Sou casado agora, e minha
esposa sabe que eu uso. Quando eu desapareço, ela sabe que é por causa disso.
Tadinha... fica aflita por minha causa.
_ Por que você não
para de vez?
_Já tentei. Fui
internado em uma instituição dessas, de evangélicos. Foi muito bom: conheci
Jesus lá dentro, quis muito me libertar, mas essa desgraça dessa droga não me
deixa. O povo acha que é fácil se livrar delas, que você para na hora que bem
entende. Só que você pensa: “não estou com vontade de parar”, e é aí que você
vira escravo: por causa de sua vontade. Você sempre vai ter vontade de usar. A
decisão vai ser se você prefere o “barato” ou a sua saúde, sua família.
Mas
assim, moço: nunca fiz mal a seu ninguém. Eu consigo uns trabalhos aí, cato
latinha, vigio carro, e uso droga com esse dinheiro. Os “polícia” me conhece,
sabem que não faço nada de errado não. Tem até o Sgto. Tavares, que toda vez
que me pega usando me dá um sermão. O cara é gente boa. Teve uma vez que ele
até me prendeu pra não me deixar usar.
_Ele te fichou por
alguma coisa?
_Que nada, o pessoal
do Batalhão me conhece também. Só prenderam mesmo. Achei ruim na hora, mas não
falei nada. Eles queriam me ajudar, né? No máximo, eles me tomam a droga e
levam pra longe. Por causa disso até fiz amizade com eles. Nunca tomei pancada
de PM nenhum: esses que apanham deles aí são os que fazem coisa errada.
_ Que bom que você
tem pessoas que te querem tão bem.
Fernando que o diga. Ele é
evangélico, e teve um discípulo que deu muito trabalho. Depois que saiu da
célula, se envolveu com traficantes, passou a usar drogas e cometer pequenos
delitos. A família dele – já antes ausentes, frios, omissos – o escorraçou de
casa, e isso o forçou a se engendrar no crime. Desnorteado, emocionalmente
instável, cometeu alguns exageros. Poucos meses antes daquele diálogo descobriu
que o seu discípulo havia sido executado por causa de uma dívida de drogas.
_ Valorize as pessoas
que te amam. Parece clichê dizer isso, mas elas não vão estar aqui pra sempre.
Nem elas e nem você tem certeza de como vai ser amanhã. Não estou falando de
Deus, juízo, nada disso, mas das oportunidades que você perde de estar ao lado
das pessoas que se importam com você. Eu perdi recentemente uma pessoa que
procurei tirar desse mesmo caminho que você está – não era meu parente, mas eu
o amava. É doloroso, porque por mais que você ame essa pessoa, ela fica perdida
num labirinto, sozinha, sem conseguir enxergar a dimensão do que está
acontecendo consigo. Você fica de mãos atadas, e é obrigado a ver a pessoa se
destruindo.
_ Nunca pensei por
esse lado.
_ Imagino. – e com
uma pausa pequena, completou – Sua esposa pode se sentir assim. Converse com
ela um pouco, quando estiver sóbrio. Converse com sua mãe também. Elas com
certeza te amam. Mais que o Sgto. Tavares, com certeza. – e ele riu. E
lacrimejou.
_ Pois é, cara... Preciso
parar com essa merda.
_ Talvez você tenha
tentado parar sozinho, e por isso não conseguiu. Mas é só você ver as pessoas
que foram postas no seu caminho, que vai perceber que é uma bobeira tentar só. Você não está sozinho. Se fortaleça no amor
dessas pessoas por você, que rápido a gente se cruza por aí, com você de vida
nova. Eu, particularmente, ficaria muito feliz com isso.
Conversaram mais sobre isso, e sobre
tudo. Comeram juntos, sem qualquer diferença entre eles. Depois da última
mordida, se separaram. Seguiram suas vidas.
Ano seguinte Fernando ajudava sua
tia a atar ao teto do carro alguns equipamentos de viagem. Em meio ao trânsito
caótico da avenida oitenta e três, ouviu um diálogo alegre entre alguém do lado
de cá e outro do lado oposto da rua:
_ Olha só quem está
aqui! Essa bicicleta é sua?!
_ É sim! Comprei
esses dias!
Ele reconheceu remotamente a voz
alegre do outro lado.
_ Voltei pra escola,
e parei de usar coisa errada, seu Conrado.
Desta
vez, parecia contagiante, vibrante. Quando se virou para ver quem era,
encontrou um par de olhos claros, vívidos, tentando reconhecê-lo (Fernando
sorria e acenava). O rosto estava cheio, o cabelo bem tratado. Parecia um
parente distante voltando de viagem, contando suas novas. Quando o reconheceu,
mais ainda sorriu, imensamente agradecido. E um aceno de “muito obrigado”,
prendendo algumas poucas lágrimas. Como um suspiro de alívio.