quinta-feira, 19 de março de 2015

Outro Filho Pródigo

            Andando de pés descalços no calor das ruas de Goiânia, uma figura raquítica sorria para a noite. Enquanto caminhava, via-se claramente a repulsa dos "cidadãos de bem" ao seu estado. Mais que isso: via-se o medo de que ele se aproximasse. Era jovem (apesar de aparentar ter o dobro da idade), olhos claros, cabelos agradavelmente cacheados, nariz borrado de foligem. As mãos estavam escurecidas, sujas, calejadas pela vida nas ruas. Roupas maiores que o corpo, pés feridos, unhas irregulares, pretas. Apesar de maltratado, seu sorriso era irrefutável. Sua tristeza também.
            Enquanto subia a rua dez, pedia aos que encontrava algum trocado para completar um lanche. Não retribuiu um “não” sequer com dissabor: pagou a todos eles com um bom sorriso e um “muito obrigado”. Parou então diante de um casal, que também comia – como os outros a quem abordou – em um dos pit-dogs entre a praça Cívica e a Universitária:
_ Boa noite. Desculpa incomodar vocês. Eu sei que querem namorar um pouco, mas vocês teriam algum dinheiro para completar um sanduíche? Qualquer quantia. Falta só um pouquinho.
_ Claro que sim. E você não incomoda não – disse o rapaz -. Isso é tudo o que tenho agora. É o troco do sanduíche.
_ Bom demais. Dá pra comprar até um melhor do que eu estava planejando. – e foi ao balcão, pedir o seu.
            Fernando desconfiou, por um momento, que o jovem usaria o dinheiro para comprar drogas. Não conseguiu deixar de notar as queimaduras típicas na ponta dos dedos, mas sentia que precisava acreditar no garoto agora. Sua esposa e ele ficaram aliviados de não terem cometido o mesmo equívoco dos outros.
            Os três aguardavam seus sanduíches chegarem, enquanto conversavam:
_ Sou morador de rua desde os treze. Eu que decidi fazer isso, porque não queria dar trabalho pra minha família. Fugi de casa pra não ficar dando desgosto para meus parentes em casa.
_ Por quê?
_ Porque comecei a mexer com droga. Quando eu percebi que estava viciado demais saí de casa. Antes que a droga me fizesse cometer alguma besteira contra minha família, que começasse a roubar e vender as coisas de dentro de casa pra fumar.
            A maioria dos usuários de drogas começa com lícitas ou ilícitas que podemos considerar como “leves”: cigarro, bebida, maconha. Depois, gradativamente, se arrisca em outros tipos de entorpecentes mais nocivos. Qual e o quão nocivo depende muito do país em questão. No Brasil, o campeão disparado de vendas e destruidor de lares é o crack. Trata-se dos detritos resultantes da fabricação de cocaína. Uma pedra varia em tamanho e efeito, dependendo da forma como se misturam os elementos do refino ao restante. Formadas as pedras, são empacotadas e vendidas. Seu efeito é rápido: diz-se que qualquer dose de consumo dela causa dependência química instantânea. Por isso, o crack pode impelir o usuário a fazer o que foi descrito pelo jovem de rua.
_ Você prefere a rua ou sua casa?
_ Minha casa... – e o olhar ficou distante. – Eu tenho casa, na verdade. Sou casado agora, e minha esposa sabe que eu uso. Quando eu desapareço, ela sabe que é por causa disso. Tadinha... fica aflita por minha causa.
_ Por que você não para de vez?
_Já tentei. Fui internado em uma instituição dessas, de evangélicos. Foi muito bom: conheci Jesus lá dentro, quis muito me libertar, mas essa desgraça dessa droga não me deixa. O povo acha que é fácil se livrar delas, que você para na hora que bem entende. Só que você pensa: “não estou com vontade de parar”, e é aí que você vira escravo: por causa de sua vontade. Você sempre vai ter vontade de usar. A decisão vai ser se você prefere o “barato” ou a sua saúde, sua família.
Mas assim, moço: nunca fiz mal a seu ninguém. Eu consigo uns trabalhos aí, cato latinha, vigio carro, e uso droga com esse dinheiro. Os “polícia” me conhece, sabem que não faço nada de errado não. Tem até o Sgto. Tavares, que toda vez que me pega usando me dá um sermão. O cara é gente boa. Teve uma vez que ele até me prendeu pra não me deixar usar.
_Ele te fichou por alguma coisa?
_Que nada, o pessoal do Batalhão me conhece também. Só prenderam mesmo. Achei ruim na hora, mas não falei nada. Eles queriam me ajudar, né? No máximo, eles me tomam a droga e levam pra longe. Por causa disso até fiz amizade com eles. Nunca tomei pancada de PM nenhum: esses que apanham deles aí são os que fazem coisa errada.
_ Que bom que você tem pessoas que te querem tão bem.
            Fernando que o diga. Ele é evangélico, e teve um discípulo que deu muito trabalho. Depois que saiu da célula, se envolveu com traficantes, passou a usar drogas e cometer pequenos delitos. A família dele – já antes ausentes, frios, omissos – o escorraçou de casa, e isso o forçou a se engendrar no crime. Desnorteado, emocionalmente instável, cometeu alguns exageros. Poucos meses antes daquele diálogo descobriu que o seu discípulo havia sido executado por causa de uma dívida de drogas.
_ Valorize as pessoas que te amam. Parece clichê dizer isso, mas elas não vão estar aqui pra sempre. Nem elas e nem você tem certeza de como vai ser amanhã. Não estou falando de Deus, juízo, nada disso, mas das oportunidades que você perde de estar ao lado das pessoas que se importam com você. Eu perdi recentemente uma pessoa que procurei tirar desse mesmo caminho que você está – não era meu parente, mas eu o amava. É doloroso, porque por mais que você ame essa pessoa, ela fica perdida num labirinto, sozinha, sem conseguir enxergar a dimensão do que está acontecendo consigo. Você fica de mãos atadas, e é obrigado a ver a pessoa se destruindo.
_ Nunca pensei por esse lado.
_ Imagino. – e com uma pausa pequena, completou – Sua esposa pode se sentir assim. Converse com ela um pouco, quando estiver sóbrio. Converse com sua mãe também. Elas com certeza te amam. Mais que o Sgto. Tavares, com certeza. – e ele riu. E lacrimejou.
_ Pois é, cara... Preciso parar com essa merda.
_ Talvez você tenha tentado parar sozinho, e por isso não conseguiu. Mas é só você ver as pessoas que foram postas no seu caminho, que vai perceber que é uma bobeira tentar só.  Você não está sozinho. Se fortaleça no amor dessas pessoas por você, que rápido a gente se cruza por aí, com você de vida nova. Eu, particularmente, ficaria muito feliz com isso.
            Conversaram mais sobre isso, e sobre tudo. Comeram juntos, sem qualquer diferença entre eles. Depois da última mordida, se separaram. Seguiram suas vidas.
            Ano seguinte Fernando ajudava sua tia a atar ao teto do carro alguns equipamentos de viagem. Em meio ao trânsito caótico da avenida oitenta e três, ouviu um diálogo alegre entre alguém do lado de cá e outro do lado oposto da rua:
_ Olha só quem está aqui! Essa bicicleta é sua?!
_ É sim! Comprei esses dias!
            Ele reconheceu remotamente a voz alegre do outro lado.
_ Voltei pra escola, e parei de usar coisa errada, seu Conrado.

Desta vez, parecia contagiante, vibrante. Quando se virou para ver quem era, encontrou um par de olhos claros, vívidos, tentando reconhecê-lo (Fernando sorria e acenava). O rosto estava cheio, o cabelo bem tratado. Parecia um parente distante voltando de viagem, contando suas novas. Quando o reconheceu, mais ainda sorriu, imensamente agradecido. E um aceno de “muito obrigado”, prendendo algumas poucas lágrimas. Como um suspiro de alívio.