Ela tinha
os olhos assustados: alguma coisa passou pelo seu quarto e varreu tudo do
lugar. Poderia até não parecer grande coisa (afinal, o quarto precisava mesmo
de ordem, e ela concordava), mas o medo de ter sido descoberta era enorme. Será
que mexeram em sua gaveta também? Provavelmente: quando saíra, pendia dela um
terço que estava cuidadosamente colocado na caixa de joias em cima do
criado-mudo.
_ Já
falei pra você, Isadora! Meu quarto não é lugar pra você entrar!
_ Deus do
céu, amiga, como você é ingrata! Eu te faço um favor e você vem com sete pedras
na mão!
_ Não me
venha com essa! Você sabe que eu não gosto que mexam nas minhas coisas!
Era a vez
de Lúcia arrumar a casa, mas ela foi acometida por um turbilhão de
acontecimentos: seu irmão se casou no final de semana – o dia que elas têm pra
arrumar direito – numa chácara a cento e quarenta e cinco quilômetros de sua
residência. O casamento foi avisado no meio da semana. Felipe era o
ovelha-negra da família: seu Woodstock spirit implacável, apesar de criticado
pela família, era tolerado porque ele nunca foi capaz de prejudica-los por
causa de um vício qualquer. Como esperado de alguém de sua estirpe, uma loucura
como essa, saída do meio de uma comunidade esotérica, seria não menos que
pertinente: conheceu Lilás (sim, este é o nome dela) em uma comunidade hippie,
se apaixonou e se casou por lá. Tudo em três semanas. Convidou a família na
sexta para seu casamento, a ser realizado no sábado e domingo (o ritual “escolhido”
pelos noivos durava dois dias).
_ Onde
você guardou? – dizia Lucia, nervosa.
_ Guardei
o quê?
_ Minha
caixinha.
_ Aquela
que você não quer que ninguém abra? Não vi...
_
Mentira! Você sabe sim, eu sei quando você está mentindo! – enquanto Isadora
dava de ombros.
_ Só
arrumei o que estava no chão e nas gavetas de roupa. A caixinha eu achei que
você tivesse levado com você pra eu não mexer... – e tinha um fundo de razão
nessa frase. Por mais que as duas morassem juntas, aquilo era muito pessoal
para ela, um segredo que ela não queria que ninguém soubesse. Nem mesmo sua
melhor amiga. Por isso, sempre que saía de casa levava a caixinha, mas dessa
vez ela deixou em casa. A única vez que deixou em casa.
_
Isadora, você tem certeza que não viu essa caixinha?
_ Amiga,
já te disse: você anda com ela pra cima e pra baixo. Já até esqueci que você
tinha esse trem guardado. Por que me pergunta ainda?
Mas isso não era o suficiente. Elas
discutiram por toda noite, reviraram o quarto dela, da amiga, a sala, cozinha,
a geladeira, o armário do banheiro, tudo. Nada da caixinha. Alguém sabia o que
aquilo significava. Queria roubar seu mais precioso tesouro. Mas por quê? Não
era nada demais! Não ofendia a ninguém, e nem tinha tanto valor assim... Ela
prometeu que guardaria até que ele voltasse! E guardou! E justo agora, tão
perto da sua volta, embora não soubesse a data, ela perdeu! Sumiu!
_
Isadora, pelo amor de Deus, me diz que você está só brincando e que sabe onde
está essa caixinha. – Seus olhos agora marejavam.
_ Calma, amiga.
A gente vai encontrar...
Isadora não entendia o porquê de
tanto desespero. O tempo passou lenta e carpidosamente. Eram quase cinco da
manhã e elas não tinham achado. E sua amiga estava desnorteada. “Não pode ser
tão sério assim” – pensava – “não havia nada demais dentro da caixa”. Mas
enfim, ela sabia que era para o bem de sua amiga.
_ E
agora, amiga? Aquilo não era meu... – disse Lúcia, dessa vez aos prantos – eu prometi
que guardaria pra uma pessoa... e está perto do dia de ele vir buscar...
Depois de tanto sofrimento, ela não
suportou: se sentia a maior de todas as traidoras. Acreditando que estava
fazendo algo bom pela amiga, atendeu ao pedido da sua família, e revirou suas
coisas atrás daquela caixa. Assim que encontrou, entregou à sua mãe.
_ Amiga,
me perdoa...
_ Não
precisa você também começar a chorar, “manteiga”. De chorona basta eu.
_ Amiga,
me perdoa pelo que eu fiz...
_ Não me
diga que você jogou fora!??
_ Não...
sua mãe sabia que você ia ficar fora um tempão e pediu pra eu pegar essa caixa
pra ela...
_ O QUÊ?
Ela não acreditava no que tinha
acabado de ouvir! Sua mãe? Ela tirou sua caixinha? Que relação ela tinha com
aquilo tudo? Por quê? Que sentido faz? Sem demora pulou dentro do carro, e
correu até sua mãe. Eram seis e meia da manhã, em uma hora e meia deveria estar
no trabalho, mas podia esperar. Quando chegou lá, todos se reuniam à mesa do
café da manhã.
_ Mãe,
devolve agora! – assim, antes do “bom dia”, do “como vão”...
_ Filha,
por que você está tão abatida? Que foi que aconteceu?
_ Para de
enrolar, mãe! Eu sei que a Isadora pegou a caixinha no meu quarto e te
entregou! Cadê ela?
_ Por que
essa caixa é tão importante pra você, filha? Não tem nad...
_ Você
sabe por que, mãe! Você leu! Só você!
_ Minha
filha, você tem que superar isso. Ele não está mais vivo, no fundo você sabe
disso...
Aquela conversa elas já tiveram.
Inúmeras vezes, de forma exaustiva. Quando tinha onze para doze anos de idade,
ela conheceu o amigo mais equilibrado de Felipe, o Gustavo. Tão instantâneo
quanto seu encontro, foi seu amor. Ele tinha medo de apanhar de Felipe (que era
uns vinte quilos mais pesado, e ao menos quinze centímetros mais alto naquela
época). Encontravam-se às escondidas em uma praça perto de sua casa. Foi
expulso por Dona Valdete uma dúzia de vezes da frente de sua casa, até que um
dia entrou para pedir a menina em namoro. Os pais viam uma inocência sem igual
no menino, o que os levou a permitir. Era bem capaz de ser apenas um amor de
colegial, e passar depois de alguns meses. Sua amizade com Felipe, inclusive,
tornava o garoto menos encrenqueiro, porque ele apascentava as brigas, colocava
um pouco de juízo na cabeça do amigo. Isso contou pontos pro rapaz...
O namoro durou até seus dezessete
anos (ambos tinham a mesma idade), quando Gustavo prometeu que se formaria e se
casaria com ela. Ele a entregou uma caixinha – a dita cuja –, se despediu e foi
embora. Dois anos depois, se correspondendo sempre, visitando-a sempre que
podia, ele conseguiu estagiar numa pesquisa de campo do seu curso (biologia),
para catalogar espécies de insetos da Mata Atlântica. A expedição se tornou um
pesadelo por ser período de chuva, e uma delas em particular varreu o
acampamento deles, e deixou um morto, quatro pessoas em estado grave e dois
desaparecidos. Eles nunca foram encontrados. Felipe era um deles.
_ Ninguém
sabe, mãe!
_ Minha
filha... chega... – disse dona Valdete, chorando – já se passaram quatro
anos...
_ Eu sei
que ele está vivo, mãe! Eu decidi esperar por ele, e é o que vou fazer! Eu não
consigo amar outra pessoa! – agora ela que chorava. Copiosamente.
_ Você
ainda o ama, filha?
_ Nunca
deixei de amar, mãe! Você sabe disso!
_ Chega
dessa palhaçada. – falou Felipe,
deixando sua amada esposa, a família e a mesa do café da manhã, e indo até o
quarto.
_ Felipe!
– gritou o pai.
_ A guria
não quer outro cara. Pronto. Para de enrolar ela! – falou, atirando a caixinha
para suas mãos. Ela, que nunca foi boa de aparar as coisas que jogavam,
deixou-a cair no chão. Tinha dentro dela uma caixinha preta e um bilhete.
Enquanto
se abaixava pra pegar, algo inesperado acontecia. Seu pai se levantou. Seu
irmão, exclamava um palavrão. Sua mãe paralisou. Ao se virar, Lúcia se
deparou com um homem de barba por fazer, olhos castanhos, cabelo curto. Ela
estremeceu completamente ao vê-lo. Seus olhos também por explodir em lágrimas
por vê-la de novo. Era Gustavo.
_ Eu fiz
uma promessa a uma mocinha desse tamanho desta casa. Alguém a viu? – falou Gustavo.
Recebeu um tapa no rosto. Terá sido uma brincadeira de mau gosto?
_ Onde
você esteve esse tempo todo? – retrucou a moça, furiosa!
Antes que
pudesse responder, recebeu um beijo.
Dois meses depois se casaram.
Quando a
enxurrada o levou, Gustavo bateu com a cabeça. Foi encontrado a quilômetros do
local do acampamento por camponeses, desidratado, convulsionando e sem qualquer
coisa que o identificasse. Levaram-no ao hospital dizendo ser um parente que
inventaram. Ele recebeu ali os devidos cuidados, passou três semanas se recuperando. Fora
a amnésia, todo o resto estava bem. Ele se lembrava de duas coisas: seu
primeiro nome, e o da sua noiva. Demorou quatro anos para que toda a história
finalmente voltasse à tona. Ele entregou para sua noiva um par de alianças de
ouro, e prometeu que voltaria para sua cidade para que se casassem. Dentro da
caixinha, seus votos: “Guardei pra você todo meu amor. Se guardar o seu também,
prometo que volto pra você, de onde quer que esteja, pra sempre”...