quarta-feira, 31 de julho de 2013

Uma Caixinha

Ela tinha os olhos assustados: alguma coisa passou pelo seu quarto e varreu tudo do lugar. Poderia até não parecer grande coisa (afinal, o quarto precisava mesmo de ordem, e ela concordava), mas o medo de ter sido descoberta era enorme. Será que mexeram em sua gaveta também? Provavelmente: quando saíra, pendia dela um terço que estava cuidadosamente colocado na caixa de joias em cima do criado-mudo.
_ Já falei pra você, Isadora! Meu quarto não é lugar pra você entrar!
_ Deus do céu, amiga, como você é ingrata! Eu te faço um favor e você vem com sete pedras na mão!
_ Não me venha com essa! Você sabe que eu não gosto que mexam nas minhas coisas!
Era a vez de Lúcia arrumar a casa, mas ela foi acometida por um turbilhão de acontecimentos: seu irmão se casou no final de semana – o dia que elas têm pra arrumar direito – numa chácara a cento e quarenta e cinco quilômetros de sua residência. O casamento foi avisado no meio da semana. Felipe era o ovelha-negra da família: seu Woodstock spirit implacável, apesar de criticado pela família, era tolerado porque ele nunca foi capaz de prejudica-los por causa de um vício qualquer. Como esperado de alguém de sua estirpe, uma loucura como essa, saída do meio de uma comunidade esotérica, seria não menos que pertinente: conheceu Lilás (sim, este é o nome dela) em uma comunidade hippie, se apaixonou e se casou por lá. Tudo em três semanas. Convidou a família na sexta para seu casamento, a ser realizado no sábado e domingo (o ritual “escolhido” pelos noivos durava dois dias).
_ Onde você guardou? – dizia Lucia, nervosa.
_ Guardei o quê?
_ Minha caixinha.
_ Aquela que você não quer que ninguém abra? Não vi...
_ Mentira! Você sabe sim, eu sei quando você está mentindo! – enquanto Isadora dava de ombros.
_ Só arrumei o que estava no chão e nas gavetas de roupa. A caixinha eu achei que você tivesse levado com você pra eu não mexer... – e tinha um fundo de razão nessa frase. Por mais que as duas morassem juntas, aquilo era muito pessoal para ela, um segredo que ela não queria que ninguém soubesse. Nem mesmo sua melhor amiga. Por isso, sempre que saía de casa levava a caixinha, mas dessa vez ela deixou em casa. A única vez que deixou em casa.
_ Isadora, você tem certeza que não viu essa caixinha?
_ Amiga, já te disse: você anda com ela pra cima e pra baixo. Já até esqueci que você tinha esse trem guardado. Por que me pergunta ainda?
            Mas isso não era o suficiente. Elas discutiram por toda noite, reviraram o quarto dela, da amiga, a sala, cozinha, a geladeira, o armário do banheiro, tudo. Nada da caixinha. Alguém sabia o que aquilo significava. Queria roubar seu mais precioso tesouro. Mas por quê? Não era nada demais! Não ofendia a ninguém, e nem tinha tanto valor assim... Ela prometeu que guardaria até que ele voltasse! E guardou! E justo agora, tão perto da sua volta, embora não soubesse a data, ela perdeu! Sumiu!
_ Isadora, pelo amor de Deus, me diz que você está só brincando e que sabe onde está essa caixinha. – Seus olhos agora marejavam.
_ Calma, amiga. A gente vai encontrar...
            Isadora não entendia o porquê de tanto desespero. O tempo passou lenta e carpidosamente. Eram quase cinco da manhã e elas não tinham achado. E sua amiga estava desnorteada. “Não pode ser tão sério assim” – pensava – “não havia nada demais dentro da caixa”. Mas enfim, ela sabia que era para o bem de sua amiga.
_ E agora, amiga? Aquilo não era meu... – disse Lúcia, dessa vez aos prantos – eu prometi que guardaria pra uma pessoa... e está perto do dia de ele vir buscar...
            Depois de tanto sofrimento, ela não suportou: se sentia a maior de todas as traidoras. Acreditando que estava fazendo algo bom pela amiga, atendeu ao pedido da sua família, e revirou suas coisas atrás daquela caixa. Assim que encontrou, entregou à sua mãe.
_ Amiga, me perdoa...
_ Não precisa você também começar a chorar, “manteiga”. De chorona basta eu.
_ Amiga, me perdoa pelo que eu fiz...
_ Não me diga que você jogou fora!??
_ Não... sua mãe sabia que você ia ficar fora um tempão e pediu pra eu pegar essa caixa pra ela...
_ O QUÊ?
            Ela não acreditava no que tinha acabado de ouvir! Sua mãe? Ela tirou sua caixinha? Que relação ela tinha com aquilo tudo? Por quê? Que sentido faz? Sem demora pulou dentro do carro, e correu até sua mãe. Eram seis e meia da manhã, em uma hora e meia deveria estar no trabalho, mas podia esperar. Quando chegou lá, todos se reuniam à mesa do café da manhã.
_ Mãe, devolve agora! – assim, antes do “bom dia”, do “como vão”...
_ Filha, por que você está tão abatida? Que foi que aconteceu?
_ Para de enrolar, mãe! Eu sei que a Isadora pegou a caixinha no meu quarto e te entregou! Cadê ela?
_ Por que essa caixa é tão importante pra você, filha? Não tem nad...
_ Você sabe por que, mãe! Você leu! Só você!
_ Minha filha, você tem que superar isso. Ele não está mais vivo, no fundo você sabe disso...
            Aquela conversa elas já tiveram. Inúmeras vezes, de forma exaustiva. Quando tinha onze para doze anos de idade, ela conheceu o amigo mais equilibrado de Felipe, o Gustavo. Tão instantâneo quanto seu encontro, foi seu amor. Ele tinha medo de apanhar de Felipe (que era uns vinte quilos mais pesado, e ao menos quinze centímetros mais alto naquela época). Encontravam-se às escondidas em uma praça perto de sua casa. Foi expulso por Dona Valdete uma dúzia de vezes da frente de sua casa, até que um dia entrou para pedir a menina em namoro. Os pais viam uma inocência sem igual no menino, o que os levou a permitir. Era bem capaz de ser apenas um amor de colegial, e passar depois de alguns meses. Sua amizade com Felipe, inclusive, tornava o garoto menos encrenqueiro, porque ele apascentava as brigas, colocava um pouco de juízo na cabeça do amigo. Isso contou pontos pro rapaz...
            O namoro durou até seus dezessete anos (ambos tinham a mesma idade), quando Gustavo prometeu que se formaria e se casaria com ela. Ele a entregou uma caixinha – a dita cuja –, se despediu e foi embora. Dois anos depois, se correspondendo sempre, visitando-a sempre que podia, ele conseguiu estagiar numa pesquisa de campo do seu curso (biologia), para catalogar espécies de insetos da Mata Atlântica. A expedição se tornou um pesadelo por ser período de chuva, e uma delas em particular varreu o acampamento deles, e deixou um morto, quatro pessoas em estado grave e dois desaparecidos. Eles nunca foram encontrados. Felipe era um deles.
_ Ninguém sabe, mãe!
_ Minha filha... chega... – disse dona Valdete, chorando – já se passaram quatro anos...
_ Eu sei que ele está vivo, mãe! Eu decidi esperar por ele, e é o que vou fazer! Eu não consigo amar outra pessoa! – agora ela que chorava. Copiosamente.
_ Você ainda o ama, filha?
_ Nunca deixei de amar, mãe! Você sabe disso!
_ Chega dessa palhaçada.  – falou Felipe, deixando sua amada esposa, a família e a mesa do café da manhã, e indo até o quarto.
_ Felipe! – gritou o pai.
_ A guria não quer outro cara. Pronto. Para de enrolar ela! – falou, atirando a caixinha para suas mãos. Ela, que nunca foi boa de aparar as coisas que jogavam, deixou-a cair no chão. Tinha dentro dela uma caixinha preta e um bilhete.
Enquanto se abaixava pra pegar, algo inesperado acontecia. Seu pai se levantou. Seu irmão, exclamava um palavrão. Sua mãe paralisou. Ao se virar, Lúcia se deparou com um homem de barba por fazer, olhos castanhos, cabelo curto. Ela estremeceu completamente ao vê-lo. Seus olhos também por explodir em lágrimas por vê-la de novo. Era Gustavo.
_ Eu fiz uma promessa a uma mocinha desse tamanho desta casa. Alguém a viu? – falou Gustavo. Recebeu um tapa no rosto. Terá sido uma brincadeira de mau gosto?
_ Onde você esteve esse tempo todo? – retrucou a moça, furiosa!
Antes que pudesse responder, recebeu um beijo.
            Dois meses depois se casaram.

Quando a enxurrada o levou, Gustavo bateu com a cabeça. Foi encontrado a quilômetros do local do acampamento por camponeses, desidratado, convulsionando e sem qualquer coisa que o identificasse. Levaram-no ao hospital dizendo ser um parente que inventaram. Ele recebeu ali os devidos cuidados, passou três semanas se recuperando. Fora a amnésia, todo o resto estava bem. Ele se lembrava de duas coisas: seu primeiro nome, e o da sua noiva. Demorou quatro anos para que toda a história finalmente voltasse à tona. Ele entregou para sua noiva um par de alianças de ouro, e prometeu que voltaria para sua cidade para que se casassem. Dentro da caixinha, seus votos: “Guardei pra você todo meu amor. Se guardar o seu também, prometo que volto pra você, de onde quer que esteja, pra sempre”...