quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Reviramundo

            Sobraram alguns móveis na sala, implorando para que o dono não os esquecesse. Em vão: teriam apenas que aguardar o sol dar seus primeiros sinais de espreguiçar para sumirem dali para um novo lar, novos donos, novos livros. Júlio se cansara de tentar justificar sua vida. Resolveu mudar de cidade. Encontrou um bom apartamento no centro da cidade grande, um novo emprego bastante promissor e começou seu novo curso de idiomas. Todos os olhares na cidade pareciam estressados pela paisagem cinza que os contaminava. Os edifícios se impondo orgulhosamente, subjugando os pobres humanos sob suas sombras, os transportes públicos correndo de um lado para o outro, mal humorados, não conseguiam permanecer vazios por menos de cinco segundos: assim que uma leva era deixada em um ponto, outra entrava a girar-lhes as catracas. Tudo aquilo parecia uma poesia fascinante para ele, que se aventurava pela primeira vez fora de seu mundinho.
            Depois de seis anos namorando com Simone, Júlio, de vinte e dois anos de idade, percebeu duas coisas no relacionamento que o acertaram em cheio: primeiro, que sua namorada era uma mosca morta. Não que isso propriamente dito seja um problema, mas porque não havia possibilidade alguma de ele realizar seus sonhos tendo uma esposa assim ao seu lado. Simone não tinha nenhuma expectativa para o futuro além de morar no subúrbio e trabalhar como caixa de um supermercado do bairro. Reclamava do salário, da família, da comida, do final do filme, e isso o levou ao fato número dois: o amor entre eles acabou de uma vez por todas. Pensou algumas vezes antes disso em propor casamento a Simone, porém voltou atrás várias vezes nessa decisão. Ele sempre ouvia de sua mãe que não daria certo, que ela é muito bonita, simpática, mas que não seria uma boa esposa. Isso foi o motivo principal de ele não ter levado o plano do casamento em frente: mesmo a contragosto, concordava com ela.
          Simone não gosta de mudanças, e se incomoda quando alguém a propõe qualquer que seja. Quando seu patrão mudou o caixa para um mais moderno, ela quase foi demitida porque se recusava aprender a lidar com o leitor de código de barras. Segundo a própria, "levou um mês para se acostumar com a novidade". Quando mudou de casa, dizia a sogra de Júlio, ela chorava e esperneava para entrar no carro. Não queria deixar os adesivos de estrelinhas do seu quarto, e achava que do topo dos seus quatorze anos, seria justificável fazer esse escândalo. Ficou bicuda, trancada em seu novo e odiado quarto, sem falar com os seus pais por algumas boas semanas. Se Júlio tivesse que saltar rumo ao desconhecido, como seu espírito freqüentemente o exigia, Simone não o poderia acompanhar, e se o seguisse, teria que lidar com o seu mau humor contínuo. Pensando claramente nisso agora, ele sentia um certo alívio de ter percebido isso em tempo de recomeçar.
            O celular tocava de novo: era ela outra vez. Aquilo o fazia pensar em quanto tempo possuía o mesmo número. Quando o celular se cansou de tocar, ele retirou o chip e jogou pela janela do sexto andar. Sabia de cor os telefones mais importantes: o de casa e os de seus melhores amigos. Atravessou a rua, comprou outro chip, e ligou por ordem de importância para as pessoas que precisavam saber seu novo número.
           Passou três semanas inteiras desembrulhando objetos, organizando nas prateleiras, mudando os móveis de lugar. Acordava de madrugada para chegar ao trabalho pelo menos trinta minutos mais cedo, e chegava às sete em casa, quando começava a maratona até quase dez da noite. Cansado, preparava um lanche rápido, tomava um banho, escovava os dentes e se afundava em seu colchão. Essa rotina o escravizou por um tempo, mas logo fez amizades dentro do escritório, programou futebol com os rapazes, cinema com as garotas, e sua vida começou a andar em uma nova rotina, por pelo menos dois meses.
           A novidade dessa vida de sucessos que o preenchia não era tão interessante quando ele estava sozinho em seu apartamento. Numa noite de terça-feira, quando todos queriam somente dormir para estarem inteiros no dia seguinte, e não teve futebol, cinema, balada, nada, Júlio resolveu assistir um DVD na TV recém comprada. O filme era romântico, pra ser mais exato o primeiro filme que ele assistiu no cinema com Simone. Enquanto o filme desenvolvia sua trama, ele se lembrava de como ela reclamava da cor do vestido da atriz, dos comentários sobre a trama do filme, e de como nada do que ela dizia parecia ser romântico. Até que o final do filme trouxe a sua memória as últimas palavras de Simone sobre ele:
_ É incrível como o amor cura os defeitos...
_ E defeito por acaso é doença? - disse ele, ainda sob o clima de humor ácido que permeou por todo o filme.
_ Não foi isso que eu quis dizer. Em dois meses eu fiz com você coisas que nunca-de-jeito-nenhum faria em minha vida.
_ Por exemplo?
_ Comida japonesa. Eu nunca tinha comido. E nem queria saber. Pra mim era nojento comer coisa crua, mas você conseguiu me fazer provar. E gostei, tanto que vez ou outra a gente volta lá naquele sushi bar da sua rua.
_ Grande evolução.
_ Pára com isso, seu bobo. Outra que mudou: minhas roupas... - Júlio ria com a notícia. - Sério: quando minha mãe soube que eu estava namorando, jogou todas as minhas roupas fora, e me convocou às compras. Você nem notou, né?
_ Claro que eu notei. Tinha um macacão que você vestia pelo menos uma vez na semana (então foi assim que ele sumiu?). Ele tinha um rasgado perto do braço...
_ Tá bom, já entendi que você é observador.
_ Ainda bem que ele sumiu. - levou um soquinho no ombro. - Gosto muito de você assim, sabia?
_ E essa é a motivação que eu tenho para mudar. De repente nem é tão ruim assim.
_ Talvez esse seu desconforto com mudanças seja insegurança.
_ Coisa que com você não existe, porque você me deixa totalmente segura de tudo. Acho que ser amada por você meio que me curou dessa insegurança.
_ Será que não é cedo demais pra chamar isso de amor?
_ Talvez... Mas isso não exclui o bem que você me faz.
      No filme, a mãe entrega para sua filha a última carta que seu falecido marido deixou. Ele tinha descoberto que estava com um tumor no cérebro, e resolveu ajudar sua esposa a superar a vida sem ele, escrevendo cartas que chegavam de maneiras inusitadas até ela. No fim de cada carta, uma declaração: "ps.: eu te amo". 
      É verdade que ele cansou de se justificar, mas definitivamente não conseguiu parar de pensar em Simone a noite inteira, e em como ela se entregava às aventuras que eles faziam no começo do namoro. Ele não era culpado de nada, afinal! Ninguém entende por completo das coisas do coração, então por que deveria se sentir assim? "Cada um é responsável por si"- justificava-se, mas o coração retrucava, teimoso: "Ela iria onde eu fosse, por isso se ela se acomodou foi porque eu me acomodei." 
      Não conseguia mais evitar a dor nostálgica que a solidão daquele apartamento incidia sobre ele: o amor não morreu como pensava. Apenas se acomodou. Esperava que alguém tirasse-lhe a poeira e voltasse a recitar seus versos. O amor enfim só tem vida quando alguém o usa. Como um livro na estante.
      Talvez Simone só precisasse de alguém que a impulsionasse. Lembrava agora do quanto seus olhos brilhavam, mesmo nervosa, quando ele a convidava a fazer algo totalmente diferente. Via agora claramente, mesmo que parecendo tarde, que os defeitos não eram tão gritantes assim, e que poderiam ser felizes juntos, preenchendo os defeitos um do outro.
_ Mãe...
_ Quem é?... - respondeu uma voz sonolenta.
_ Sou eu, mãe.
_ Que foi, Júlio? Aconteceu alguma coisa?
_ Não é nada demais, mãe. Só preciso conversar com você.
_ Espera um pouco, que eu vou descer lá pra sala.
Ela desceu com cuidado o lance de escadas, pois sua idade não era tão avançada assim mas somado à escuridão poderia ser perigoso ter pressa.
_ Pronto. Pode falar, meu filho.
_ Mãe, eu não consigo esquecer a Simone.
_ Quê?
_ É isso, mãe. Não consigo. Passei dois meses tentando, mas...
_ Você me ligou pra dizer que não se esquece da Simone?
_ Desculpa, mãe, mas eu preciso de um conselho. Eu sei que da última vez que conversamos a senhora me disse que não daria certo se me casasse com ela, porque ela vive impondo limites pra mudanças...
_ Sim...
_ Mas eu não consigo esquecer ela, mãe.
_ Entendi. - e a mãe deu um longo suspiro. - Você quer voltar com ela.
_ Não sei... Talvez seja só mais uma noite daquelas...
_ Filho, sua mãe não pode escolher com quem você vai se casar. - Aquela resposta era mais que o suficiente: a decisão era única e exclusivamente dele. Ligaria o começo do dia para Simone.
_ Então você apoiaria se eu me decidisse por pedir a Simone em casamento?
_ Aquele dia eu fiquei em choque, filho. Fui pega de surpresa. Não queria perder meu bebê. Achei que estava te protegendo de uma vida de brigas sem fim, como fomos seu pai e eu. Quando você falou em se mudar para Florianópolis, eu percebi do que realmente tinha medo: perder você. Mas um dia você teria que viver por si...
_ Mas você não vai me perder, mãe. Eu sou seu filho.
_ Desculpa, filho. Agora não podemos voltar atrás. O que está feito, está feito. Me perdoa por não ter percebido antes.
_ Não precisa se desculpar, mãe. Eu te entendo. Promete que não vai mais se martirizar por isso.
_ Prometo... - disse ela, com voz trêmula.
_ Então está decidido: amanhã vou ligar para ela. Se ainda houver alguma possibilidade de nos reconciliarmos, volto para oficializar o pedido.
_ Ela não está aqui, filho.
_ Quê?
_ Ela e os pais se mudaram para a França. Não deixaram contato nenhum. Foi há pouco mais de um mês, pouco depois de você partir.
         Então era isso: uma boa oportunidade de ser feliz tinha oficialmente se jogado pela janela. Antes de desligar o telefone, fez a mãe repetir o juramento. Chorou como um garoto pelo resto da noite, e de outras seguintes, por algumas semanas. Enfim, todos somos vítimas do medo de mudar, direta ou indiretamente. Principalmente porque temos medo de nos arrependermos das mudanças que vierem. Seu medo era que alguém em sua vida fosse como uma âncora, impedindo-o de conhecer águas mais profundas. Achou que fosse sua ex-namorada, e depois, por um momento, quis colocar a culpa em sua mãe. Mas sabia que, inegavelmente, o único responsável pelo que houve era ele próprio e o seu medo: das mudanças que o casamento traria para sua vida."O futuro é uma caixa de pandora que somos obrigados a abrir", pensava ele. Fingia não se arrepender, e agora mais do que nunca, via que era impossível não inventar desculpas. Repetia para si mesmo seus motivos: agora era profissionalmente bem sucedido, cheio de novos amigos, em uma cidade excelente e estava focado em seu futuro. Desconsolado. E agora sozinho.