terça-feira, 20 de setembro de 2011

Diário de uma Estabanada

LADO A – Toda a minha vida eu fui estabanada. Sério: tudo começa ou termina em um acidente. Até o meu nascimento foi um acidente. É a Lei de Murphy: se alguma coisa tem a possibilidade de dar errado, é certeza que vai dar errado. Todos os cantos de parede achavam minha unha encravada, assim como todos os vasos e objetos frágeis da minha casa tinham que cair quando eu estava passando, pra euzinha aqui levar a culpa. Acho que a sorte é minha inimiga de nascença. Impressionante como eu sou sempre a última pessoa a encontrar dinheiro no chão, por exemplo. Uma vez eu achei um celular, mas não consegui usar ele porque pedia o código PIN.
     Para terem uma idéia do quanto a sorte é minha inimiga, conheci no colegial uma pessoa que nunca mais me deixou em paz desde que o conheci. Eu estava atrasada para a prova de geografia, que ia ser aplicada na primeira aula, e um cartaz da aula de física que eu passei a madrugada fazendo. Quando dobrei à direita o bendito topou comigo. Ele era muito bonito, mas acho que por isso mesmo ele se achava.
_ Que droga, menino! Amassou o meu cartaz todo!
_ Te perdôo, totalmente. Eu também entendo que foi um acidente.
_ Convencido! – e minhas amigas, espiando da janela, riam compulsivamente – Se você olhasse por onde anda isso não teria acontecido!- e notei que seu nariz sangrava - Era o que me faltava: seu nariz tá sangrando...
_ Acho que foi o livro de física. Tudo bem, tá tranqüilo...
_ Me devolve ele ... E pára de sangrar, por favor, que eu sou fr... e resmunguei o resto, porque minhas vistas já estavam totalmente embaçadas, e não me lembro de mais nada. Disseram que eu falei uns nomes bem feios pra ele e desmaiei. O fato é que quando acordei estava na enfermaria e ficaria até um pouco mais tarde porque precisava fazer a prova de geografia na última aula (eu ia sair na penúltima, que ódio). Mas acordei a tempo de apresentar o trabalho de física.
_ Desculpa por ter topado com você daquele jeito – Falou ele.
_ Tudo bem. Da próxima vez você toma um pouco mais de cuidado.
Aquilo foi o suficiente para faze-lo ficar calado por um tempo.
_ É sério, foi sem querer.
_ Tudo bem, eu entendo. Desculpa por ter te xingado antes de desmaiar. É que eu sou fraca com sangue, a minha primeira reação é essa mesmo.
_ Tudo bem. Eu vi que você não estava normal.
Após uma pausa, ele emendou:
_ Assina o meu band-aid?
_Quê?
_ Assina o meu band-aid... Quando eu não precisar mais dele, eu vou guardar, pra lembrar do nosso primeiro encontro...
     O que ele queria dizer com “primeiro”? Será que ele acha mesmo que eu vou sair com ele? Nossa, como ele é convencido. Lindo também: olhos castanhos claro, cabelinho cacheado, forte, alto, barba por fazer porque ele também tinha acordado atrasado... Talvez se o tivesse encontrado em outra ocasião a gente poderia ter uma chance, mas fala sério; que tipo de romance começa com um esbarrão?
_ Não. Se quiser pode guardar o band-aid. Fica a seu critério, mas eu não preciso assinar nada.
_ Tudo bem...
     Desde então o garoto fica um grude em mim, mas quanto mais ele se aproxima, de mim, mais insuportável ele fica. E não entendo o porquê de ele ainda insistir, porque ele também não me suporta. A gente sempre discutia porque ele era muito certinho, e eu sou super desorganizada; minha amiga, que conhece ele um pouco mais me diz que ele fala de umas coisas que nunca na minha vida me interessaram; curte músicas totalmente diferentes das minhas; eu gosto de comida japonesa, e ele não. A Taciane vive me enchendo o saco, dizendo que eu gosto dele. Não sei de onde ela tirou uma idéia dessas. Ela me falou também que ele reluta com isso, mas que também está caidinho por mim, por isso vive me procurando pra brigar. Ela era a única que tinha essa teoria, porque todo o resto da escola via o quanto nós dois somos incompatíveis. Pra se ter uma idéia, quando ele se aproxima de mim, as palmas de minhas mãos começam a suar, meu coração acelera, me dá vontade de gritar com ele, bater, qualquer coisa pra manter ele longe de mim. Ele definitivamente não me serve. Pra dizer a verdade, nunca dei muita sorte no amor.
     No dia do meu vestibular, acordei caindo da cama, porque estendi a mão para desligar o despertador, mas ele estava muito longe. Peguei o ônibus errado, e assim que percebi, parei no ponto seguinte e voltei. Quando peguei o ônibus que achei que era o certo, descobri que o primeiro que eu tinha pegado ia parar onde eu queria chegar. Resultado: não fiz a prova. Minha mãe não ia me pagar um cursinho pré-vestibular, então me matriculei em um curso técnico, e passei a trabalhar no RH de uma distribuidora. O que sempre quis foi publicidade e propaganda, mas como boa estabanada que sou consegui estragar a chance da minha vida. Vivo para trabalhar, porque não tenho amigos com quem sair. As minhas amigas de colégio me encontram de vez em quando e perguntam o que eu faço da vida. Finjo que faço o que eu sempre quis na vida, para contar alguma vantagem, mas o fato é que a vida não privilegia pessoas estabanadas como eu. Estou fadada a viver sozinha e cheia de hematomas. É aquilo que falei: se uma coisa tem a possibilidade de dar errado, perca as esperanças, porque ela vai dar errado.

LADO B - Toda minha vida eu fui estabanada. Sério: tudo termina ou começa em um acidente. Quando criança eu vivia dolorida por causa do meu talento para quebrar, tropeçar, derrubar, trombar em coisas. Isso significa que eu deveria ser uma azarada de primeira, mas sabe de uma? Acho que a sorte é uma sujeita tão estabanada quanto eu, porque ela vive tropeçando em mim. Perdi as contas de quantas vezes eu dei de cara no chão exatamente onde tinha uma nota de dez reais, ou quase perdi a canela em um banco de praça com um celular de última linha (devolvi todos. Até me recompensaram com dez ou vinte reais).
     Como uma boa e eficiente estabanada, a danada da sorte topou comigo no primeiro ano do colegial. Pra variar, eu estava atrasada pra aula – a primeira era de geografia e tinha prova -, estava com uma pilha de livros, um cartaz da aula de física que a gente ia apresentar na segunda aula e que eu fiquei até de madrugada fazendo. Sem muito tempo pra me preocupar com o trajeto, fiz uma curva fechada à direita, e como tinha que ser, encontrei um obstáculo – lindo por sinal, olhos castanhos claro, cabelinho cacheado, forte, alto, barba por fazer porque ele também tinha acordado atrasado - que me lançou todos os livros no chão, amassou meu cartaz da aula de física e teve a deselegância de sangrar na minha frente (eu sou fraca com sangue).
_ Que droga, menino! Amassou o meu cartaz todo!
_ Tá desculpada. Eu também entendo que foi um acidente.
_ Convencido! – e minhas amigas, espiando da janela, riam compulsivamente – Se você olhasse por onde anda isso não teria acontecido! Meu Deus, seu nariz tá sangrando...
_ Acho que foi o livro de física. Tudo bem, tá tranqüilo...
_ Ai, moço, desculpa... Pára de sangrar, por favor, que eu sou fr... – resmunguei o resto, porque minhas vistas já estavam totalmente embaçadas, e não me lembro de mais nada. Disseram que eu falei uns nomes bem feios pro coitado e desmaiei. O fato é que quando acordei estava na enfermaria e ficaria até um pouco mais tarde porque precisava fazer a prova de geografia na última aula (eu ia sair na penúltima, que ódio). Mas acordei a tempo de apresentar o trabalho de física.
_ Desculpa por ter topado com você daquele jeito.- falou ele.
_ Não precisa se desculpar. Eu só falei aquilo porque eu estava com muita raiva. Passou... – e ele sorriu pra mim. Nem o band-aid colorido no nariz dele conseguia estragar aquele sorriso. Acho que era uma daquelas paixonites de adolescente, mas eu ri de volta, um pouco corada.
_ Assina seu nome no meu band-aid?
_ Não vai doer não?
_ Só se você assinar dentro do meu olho.
_ Engraçadinho...
_ Não, não quis dizer isso. É porque eu vou guardar o band-aid quando não precisar mais... Pra me lembrar do nosso encontro.
Encontro? Ele disse ENCONTRO? Novamente os sintomas daquela paixonite apareciam, agora em todo o meu rosto branquelo e na palma das minhas mãos.
_ Posso assinar no seu band-aid também?
_ Pode. – respondi, gaguejando e quase sem voz de tão desconcertada que ele me deixou. Doeu um pouquinho, mas e daí? Ele se aproximou bastante –pra mostrar que era cheiroso, só pode – e assinou. Depois, foi a minha vez. Já que estava mesmo rolando um clima, peguei de leve no queixo dele, como se fosse dar um beijo, e fiquei a mais ou menos meio palmo dele. Saiu um pouquinho torto porque ele ficava me olhando nos olhos.
_ Que foi? – falei por impulso.”Aff, menina tonta estabanada! ‘Que foi’? Ele quer te beijar, só isso tudo”...
_ Seu band-aid é da turma da mônica. – disse, rindo.
     Na semana seguinte o Maurício e eu estávamos saindo. Nem vou dizer que eu derramei refrigerante no meu vestido quando a gente foi na sanduicheria do lado da escola, o nosso primeiro encontro. Eu é que dei o primeiro beijo. Ele falava de assuntos que nunca me interessaram antes dele aparecer. Gostava de músicas bem diferentes das minhas, sempre tinha as respostas certas na hora certa. Parecia ser muito maduro para a idade dele. Com alguns meses de namoro, às vezes me irritava quando ele me corrigia, assim como eu irritava um pouquinho quando ele chegava pra gente ir ao cinema e eu ainda não estava pronta, ou quando mudava de idéia no meio do caminho e resolvia comer comida japonesa ao invés de sorvete. As coisas que são totalmente opostas na gente são as que eu admirava mais nele, e vice-versa. Eu falo demais, e ele fala somente o necessário; eu me visto com cores quentes, vibrantes, e ele tem dificuldade de curtir uma bermuda e havaianas na época do calor; fala como um erudito, e eu falo como uma cheerleader. Gosta de cinema, e eu gosto de clube; pensou primeiro em um apartamento, e eu não penso no que vem primeiro: eu compro primeiro e penso depois. Um caso bem “Eduardo e Mônica”.
     No dia do meu vestibular, acordei caindo da cama, porque estendi a mão para desligar o despertador, mas ele estava muito longe. O Maurício me ligou pra ter certeza que eu não chegaria atrasada. Até me ofereceu um táxi, mas eu sei me virar, e respondi que não precisava. Peguei o ônibus errado, mas descobri que era o certo porque duas garotas que eu conheci no ônibus estavam indo fazer a mesma prova. Eu esqueci de levar caneta esferográfica, mas a Júlia me emprestou uma extra que ela tinha. A Renata queria fazer a mesma coisa que eu: publicidade e propaganda. Foi assim que descobri minhas melhores amigas. Hoje trabalhamos juntas: a Júlia é a contadora da firma de publicidade que eu e a Renata montamos.
O Maurício hoje é advogado. Melhorei bastante depois que casamos. Por exemplo: não perco mais o celular como antes, e sempre sei onde estão minhas chaves - se eu me esquecer, o Maurício coloca em cima da penteadeira, no lugar que decidimos que seria do celular e das chaves. Estou mais organizada, mais cautelosa, aprendi a evitar alguns acidentes domésticos que eram bem clássicos com a minha pessoa. Enfim, acho que estou me reabilitando da vida de estabanada. Mês que vem a família vai aumentar. Torço para que ela não seja estabanada como a mãe, mas se isso acontecer, vou lembrá-la de que a dona sorte também dá suas trombadas de vez em quando.