segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Caixa de Mensagem

       Onze minutos de espera desta vez, e um caderno cheio de protocolos. Uma música instrumental se repetindo, vez ou outra interrompida por frases como: “Aguarde, pois sua ligação é muito importante para nós”. Regina tinha muitos motivos para desistir, mas desta vez havia muita coisa em jogo. Tentou várias táticas para que os atendentes não a desligassem, mas foi em vão. O melhor resultado que havia conseguido era aquele: passava pela décima quarta vez pelo atendimento eletrônico, e já tinha perdido as contas de quantas pessoas a ouviram, em todos os estados emocionais do seu vasto repertório. Seu marido tentou conseguir atendimento na ligação passada. Ele é mais paciente que ela, mas desta vez não conseguiu manter um nível de conversa coerente.
_ Silmara, boa tarde. Com quem eu falo? – ouviu Regina. Uma voz evidentemente estressada, mas ainda assim, parecia que alguma simpatia havia sobrevivido até aquele “boa tarde”.
_ Silvana?
_ Silmara.
_ Meu nome é Regina, Silmara. Regina! E você deve ser a centésima pessoa a me atender só nesta ligação. Sabe quantas horas eu estou tentando receber atendimento? Três horas e meia! Já até decorei a melodia da musiquinha irritante do atendimento eletrônico.
_ Em que posso te ajudar, Regina?
_ Não sei mais se você pode, Silmara, mas vou tentar outra vez.- ela já perdera a paciência, as esperanças, o juízo. Se não fosse tão importante já teria desistido e reclamado na Anatel. – O que eu quero é somente recuperar a senha da minha caixa de mensagem. Nada mais. Parece que ninguém aí sabe, porque todo mundo dá um jeito de se livrar de mim. O que foi que eu fiz pra vocês? Eu só quero que alguém me ajude.
_ Eu estou te ajudando agora, Regina. – disse Silmara, enfatizando o “eu”. - Nós vamos recuperar a senha da caixa de mensagem. Pode por gentileza me confirmar...
_ De novo? Já confirmei umas mil vezes os meus dados. Você tem tudo aí, por que eu ainda tenho que confirmar?
_ Por segurança do titular da linha, nós sempre confirmamos esses dados antes de efetuar qualquer registro.
         Confirmou os dados e emendou:
_ Agora por favor, não me transfere para lugar nenhum, moça.
_ De forma alguma. Eu sou a responsável por este atendimento. Aguarde só um momento enquanto faço algumas verificações, tudo bem?
_ Tudo. – e ela não ouviu nada do outro lado. As centenas de vozes e teclados da central de atendimento sumiram.
         Silmara estava naquele momento falando com o seu supervisor:
_ Olha pra isso! Só agora ela foi transferida treze vezes. Comigo quatorze.
_ Anote os ramais e me passe depois. Vou cuidar pra que cada um desses malas tenham o que merecem.
_ Alô! – gritou Regina, do outro lado.
_ Estou aqui, Regina.
_ Ufa! Achei que você tinha me desligado.
_ Não, pode confiar em mim. Eu digo e repito que este atendimento é responsabilidade minha agora. Não vamos encerrar a ligação enquanto não recuperarmos a senha da sua caixa de mensagem, tudo bem? – “Graças a Deus”, pensava Regina, “alguém que me entende”.
_ É porque eu não estava ouvindo nada, então achei que você tivesse me desligado.
_ Eu tive que colocar a ligação no mudo para reportar algumas informações do atendimento para o meu supervisor, mas não vou mais fazer isso. Qualquer dúvida, pode me chamar.
_ Tá.
         Silmara checou os procedimentos internos, e após alguns minutos retornou:
_ Regina, obrigada por aguardar. Eu tive que fazer o reset da senha de sua secretária virtual, que retornou para a senha inicial. Por gentileza, pode anotar o procedimento que eu vou te falar?
_ Espera um pouco. – e ela correu para pegar outra vez o caderno.
_ Pode falar.
_ A senha inicial é um, dois, três, quatro, mas o atendimento eletrônico não vai permitir que você acesse a caixa de mensagem antes de modificar para uma senha pessoal, que é mais segura. Para alterar a senha, você vai retirar o telefone do gancho, aguardar o tom de discar, e teclar oito, cinco, oito e quadrado.
_ Espera um pouco que eu estou anotando. Oito, cinco... oito?
_ Isso mesmo, e quadrado.
_ No meu telefone não tem quadrado não.
_ É o “jogo da velha”...
_ Ah, bom... E depois?
_ Depois ele vai te direcionar para a mudança da senha. Digite uma senha com quatro números e aguarde pela confirmação. A senha só não pode ser com números repetidos, ou postos em seqüência, como cinco, meia, sete, oito, por exemplo.
_ hum, uhum...número da senha... Ok, e depois?
_ Confirmada a senha, você automaticamente entra no menu inicial, e tecla a opção quatro. O menu vai te falar quantas mensagens você tem, e qual opção teclar para acessar cada uma delas. No final da mensagem, vai te dar a opção de salvar ou excluir.
_ Então agora você vai esperar aqui porque eu vou fazer a mudança da senha conforme você me orientou.
_ Mas a ligação não vai cair? Você não teria que encerrar esta ligação pra fazer a programação? Porque se você  tiver que desligar eu dou um espaço de cinco minutos e ligo de volta...
_ A gente tem dois telefones. Eu estou falando do que está no nome do meu marido, vou até o escritório fazer a programação e já volto.
_ Tudo bem.
_ Promete que você não sai daí?
_ Prometo.
         Silmara se sentia meio enganada pela cliente: fazia seis minutos que ela saiu para resgatar a sua senha, e ainda não tinha voltado. Agora não podia desligar, porque disse que esperaria. Na verdade, poderia simplesmente chamar três vezes por Regina, e caso ela não respondesse, encerrar a ligação sem problema algum. Onze minutos depois um homem toma o telefone, aos prantos:
_ Alô?
_ Sim, aqui é a Silmara. Com quem eu falo? –  respondeu por reflexo, assustada.
_ Aqui é o marido da Regina, o Valter.
_ Tudo bem, Valter? Eu estava com sua esposa na linha agora a pouco, e ela ficou de fazer a programação no telefone para recuperar a senha da caixa de mensagem. Ela conseguiu?
_ Conseguiu sim, minha filha. E eu quero muito te agradecer por isso. Seu supervisor está? Gostaria de falar com ele...
_ A respeito de quê?
_ Não precisa ficar com medo. Não é nada pra te atrapalhar.
_ É porque eu preciso dizer a ele o motivo.
_ Diz que eu quero falar com ele sobre você.
_ Tudo bem. Aguarde um momento que eu vou chamar.
         O supervisor ficou sem entender o porquê. Foi um atendimento tão perfeito. O que pode ter saído errado? Pegou o headset, pôs no ouvido e se apresentou:
_ Sim, eu sou o gestor dela desde que chegou na central. Sim, sim, é verdade. Não... ela nunca atendeu com esse tipo de comportamento, é uma característica dela... Não... – e fez uma pausa e tanto. – Entendo. Lamento por sua perda.
_ A mulher dele morreu? – perguntou Silmara, se remoendo de curiosidade. O supervisor apenas acenou com a mão dizendo que não e que ela ficasse em silêncio. Olhava para ela, cada vez mais surpreso com o que ouvia, até que começou a querer chorar.
_ Sim, ela está aqui do meu lado. Quer falar com ela? Sim, só um momento. – e passou o headset para ela.
_ Pode falar, Valter. Estou te ouvindo.
_ Eu precisava agradecer de forma especial pelo seu trabalho, minha filha, porque você não faz idéia do quanto você foi importante para nós.
_ Obrigada. - disse, ainda sem entender.
_ Não sei o que faria sem você. Sabe por quê? Meu filho faleceu recentemente, e a gente não teve a oportunidade de vê-lo novamente desde que foi estudar em São Paulo.
_ Sinto muito, Valter.
_ Quando saiu de casa estava brigado com a mãe, que não queria que ele saísse antes de se casar. No dia seguinte ela já estava arrependida, mas não tinha mais contato com ele. Isso já tem dois anos e meio. Na semana em que ele vinha para cá, tinha deixado um recado para avisar que chegaria em breve. No recado ele disse: “Mãe, espero que me perdoe pelo que fiz. Sinto muito sua falta, e não quero ficar brigado com você. No começo fiquei com raiva, mas não dá pra ter raiva justo de você, que sempre me quis bem. Te amo”. No dia seguinte, ele sofreu um acidente de carro. Minha mulher não se perdoava por ele ter morrido brigado com ela, e começou a adoecer.Isso tem quase uma semana, e ela não chorava por ele, não entendi bem o porquê: ela se sentia culpada, e queria o perdão dele. Está no quarto chorando tudo o que guardou até agora, e por isso eu é que peguei o telefone. E ainda bem que você nos ajudou com a mensagem, porque ela não conseguiria viver carregando essa dor por muito tempo.
_ Realmente sinto muito, Valter.
_ Você não precisa sentir. Parabéns por sua competência, e por ter ouvido nosso pedido.
_ Obrigada. – ela falou tentando segurar as lágrimas. – Mas como vocês ficaram sabendo da mensagem?
_ A noiva, que ele queria apresentar pra gente hoje, nos avisou da mensagem. Enfim, muito obrigado, viu?
         Ela encerrou o atendimento, engasgando as palavras da fraseologia final. Precisou de algum tempo para se recompor. Não tinha percebido como seu trabalho pode influenciar a vida de alguém, e a sua própria. Imaginou uma história inteira: se o jovem foi feliz com aquela noiva, como foi quando a sua mãe o tentou encontrar, se no lugar dela teria ido até o fim com o atendimento, como seria ver um filho morrer antes dos pais. Pensou se teria tempo o suficiente pra falar tudo o que ela quer e precisa falar, se as pessoas que ela ama estarão em casa quando ela chegar, se ela viverá o suficiente para ter filhos. Esperou sua pausa chegar, pegou seu celular no armário, ainda com olhos marejados, e discou um número:
_ Pai, me perdoa... – falou quando ouviu a voz do outro lado. – Eu sei... eu sei... o senhor estava certo... Nada não, pai. Só estou arrependida... nada não, sério... É que... eu percebi que esse tempo todo sem conversar com o senhor ... Foi uma bobagem, eu não precisava ter feito isso... Quero. Eu saio daqui e passo aí pra gente conversar... Também, pai. Beijo.
         Ela o culpava pela separação deles. Acha que ele desgastou o casamento com sua mãe, o que a afastou dele, e por isso merecia certas hostilidades, como na semana passada em que fugiu de casa para ir à uma festa. Quando ele foi buscá-la, foi humilhado em público. Ela falou coisas sobre o casamento dele que ninguém mais precisava saber. Agora lamentava sua imaturidade.
Por mais cruel que seja a morte é a única coisa que nos faz relembrar o que realmente é importante, e rever nossas prioridades. Mais interessante ainda é como fatos como esses acontecem exatamente quando precisamos repensar atitudes que podem nos levar a um caminho sem volta. Silmara agradecia por ter tido a oportunidade de voltar atrás naquele momento. É certo que o que aconteceu não pode ser mudado, mas de agora em diante ela decidia-se por não perder oportunidades de aproveitar a presença das pessoas que ela mais amava. Afinal, como dizia seu cantor preferido, “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”, e nunca até aquele episódio, essa frase – essa música inteira – fizera tanto sentido para ela. Foi exatamente esse o dia em que ela se livrou da sua velha maquininha de rotular culpados e inocentes. O último rótulo ela pensou em pregar na própria testa, mas descobriu que não tinha mais espaço. Tudo bem, porque aquele era um novo começo.