terça-feira, 2 de agosto de 2011

Um Péssimo Aniversário

Foi duro para Cláudia. Não era algo fácil de se decidir, mas ela chegou à conclusão de que aquele era o limite. Para ela, era imperdoável ele tê-la deixado ali, plantada na sala, em trajes de gala, esperando que a levasse em sua própria festa de aniversário. Depois de quase uma hora e meia recebendo ligações desesperadas de todos os membros possíveis e imagináveis de sua família, e de ter ligado no mínimo trinta vezes para ele, decidiu pegar um táxi. Tinha sido assim nos dois últimos meses: ele repentinamente inventava uma desculpa para ela e sumia, sem dar satisfações. Muitas “amigas” disseram tê-lo visto em alguma boate, bar, festa, não menos de uma vez. Normalmente Cláudia não empresta seus ouvidos à esse tipo de comentário, mas onde há fumaça, há fogo, e no caso dele, era fumaça demais.
_ Se não foi à casa da Jennifer, onde você estava, Rafael? – havia perguntado há duas semanas atrás.
_ Depois de cinco anos de namoro você ainda não confia em mim, Cláudia? Por que a gente não conversa cara a cara com ela amanhã, já que você acha que eu estou mentindo? Assim a gente dá cabo dessa dúvida de uma vez por todas.
_ É só me dizer onde você esteve naquela noite, Rafael. Não precisa fazer esse drama.
_ Quem está fazendo drama é você, com esse ciúme bobo.
_ Ciúme bobo? Meu namorado some, desliga o celular, não deixa notícias com os pais, com os amigos, com ninguém, toma o carro do melhor amigo emprestado e vai até a cidade da menina que vive dando em cima dele quando está na cidade. Você quer que eu simplesmente sorria e diga que está tudo bem, e que são coincidências insignificantes, Rafael? Tenha dó!
_ Tem razão. Vou ligar pra ela agora e falar que vou passar lá, e nós dois vamos até a porta da casa da tia dela,onde ela sempre fica hospedada. Hoje mesmo... Por que esperar até amanhã? – falou ele, pegando o celular.
_ Pára com isso, Rafael. Não precisa. Odeio quando você faz isso.
         O celular vibrou. Era ele! Agora que ela tinha tomado um táxi e não precisava mais dele, o bendito resolve aparecer? Quanta consideração a dele, hein?... Desta vez não. O celular vai cansar de tocar: ligações dele definitivamente não merecem atenção hoje. Já bastava o esforço que ela fazia para não chorar. A vontade dela era de atender e despejar todos os palavrões que conseguisse, terminar tudo e ponto final. Se ela fizesse isso, ia chorar e borrar a maquiagem, portanto, isso deveria aguardar. Se alguém perguntasse por ele na festa, ela simplesmente diria: “Está proibido falar esse nome na minha festa, ok”? Sairia do táxi e deixaria seu celular de propósito dentro dele, para ser forçada a trocar o número. Assim ele não a encontraria mais. Depois de amanhã ela vai viajar para Florianópolis a estudos, e já que ele não tem a coragem de abrir o jogo com ela e terminar de uma vez com essa palhaçada, que fique sem saber o que aconteceu.
_ É esse aqui, moça?
_ É sim. Residencial Atlantis. Quanto ficou, moço.
_ Vinte reais. – falou o motorista, agora sem graça. Tentou a viagem toda puxar conversa com ela, e desempenhar seu papel de psicólogo, mas a mocinha não estava muito afim de conversa. Entregou o dinheiro, saiu atordoada e bateu a porta com força. Ele poderia ter reclamado, mas ela deve estar com algum problema daqueles.
_ Meu Deus, Cláudia! Fiquei preocupada. O que aconteceu? – perguntou a mãe. Ao ver que a filha estava sozinha e arrasada desfez a pergunta. Só podia ter brigado com o namorado de novo:
_ Esquece. Depois da festa a gente conversa sobre isso.
         Estavam todos lá: sua prima Sofia veio da Bélgica, e com ela mais dois amigos altos e loiros que queriam conhecer o Brasil. Sua tia Sula e família, enterrados há muito no interior de São Paulo; seus tios da cidade grande, primos, todos. Dos seus amigos, todos os mais chegados, sem exceção, estavam lá. Até mesmo Sócrates, que teve vestibular pela manhã, viajou perigosamente para vê-la.
_ Amor da minha vida. Por que não abandona aquele cabeludo e casa comigo?
_Como é que você conseguiu chegar aqui, menino? São quase três horas de viagem...
_ Eu estava de moto, e vim rasgando o chão. Não é todo dia que minha futura noiva... – ele levou um tapa no ombro – Tá bom: minha melhor amiga desde o jardim de infância (melhor assim?)...
_ Melhor. Seu bobo...
_ Tá. Não é todo dia que ela faz vinte e dois anos.
_ Você devia tomar mais cuidado com estradas, sabia? Não conseguiria me perdoar se acontecesse alguma coisa com você só porque você não queria perder minha festa.
_ Mas dirijo muito, Miss Pepper. Pode ficar tranqüila...
_ Aham... Super-homem...
_ Mas quando eu cheguei aqui na entrada eu parei de correr: teve um acidente feio com uma ambulância e um caminhão desgovernado. O motorista estava bêbado, deixou o caminhão entrar na outra pista e bateu com tudo em uma ambulância. A vítima que estava sendo transportada morreu na hora, e um cara que estava com eles faleceu a caminho do hospital. Até quando eu saí de casa estava passando no jornal. O cara estava tão feio que ninguém reconheceu ainda.
_ Credo, no meu aniversário e você me contando sobre esses acidentes.
_ Cláudia, meu bebê, vem cortar o bolo!- sua mãe gritou.
         A cerimônia de cortar o bolo é sempre igual: primeiro vem o parabéns, e depois o famoso “com quem será” (Cláudia fingiu que não era com ela, e que não queria matar ninguém). Alguém grita: “Discurso”, mas ninguém deixa a aniversariante falar. Em seguida, o discurso do primeiro pedaço, que Cláudia dedicou à sua mãe, que batalhou sozinha para oferecer à filha a melhor vida que pôde, e volta e meia, apesar dos sinais evidentes de estresse, trazia uma surpresa ou outra para ela. Notou então que Sócrates estava ao telefone durante o discurso, e que estava muito nervoso por algum motivo. Ele olhava para ela e desviava o olhar, e em seguida foi conversar lá fora. Ela terminou o discurso e foi atrás dele. Alguma coisa deve ter acontecido com seu irmão mais velho, que estava com uma cirurgia marcada para o joelho. Não o tinha visto na festa, provavelmente por isso: a cirurgia estava marcada para o dia seguinte, às seis da manhã.
_ O que foi, bicudo? Aconteceu alguma coisa?
_ Aconteceu.- disse ele, tentando segurar as lágrimas.- Pode chamar sua mãe por favor, Cláudia? – aquele pedido não era tão estranho para ela: a sua mãe era a maior confidente dela e de seu amigo de infância. Ela é quem resolve os conflitos emocionais deles. Enfim devia ser apenas algo do gênero.
_ Não quer falar comigo?
_ Não, eu preciso falar com sua mãe primeiro. Chama ela pra mim, e depois eu te chamo pra gente conversar.
         Enquanto ele e sua mãe conversavam, ela observava as reações, e tentava deduzir do que se tratava. Sua mãe olhava pra ela, cruzava os dedos, gesticulava, se esforçava para falar o mais baixo que pudesse. Essas coisas ela só faz quando é alguma coisa muito grave. Ela começou a suar as palmas das mãos. Por fim sua mãe a chamou.
_O que foi, gente? Por que essa cara?
_ Lembra do acidente que eu disse que vi quando estava voltando para a cidade? – disse Sócrates, agora um pouco mais calmo, e com uma cautela que arrepiava a espinha.
_ Sim. O que tem?
_ Filha, senta aqui perto da mamãe... – não podia ser bom. Os milésimos de segundo pareciam horas de suspense. A conversa estava simplesmente horripilante. Quem será que estava naquele acidente?
_ Quem estava lá, mãe? - direta, como a ansiedade demandava.
_ Filha, cadê o seu celular?
_ Deixei no Táxi. Quem estava no acidente, mãe?
Silêncio. Era inevitável: não é uma notícia fácil de dar. Quisera Sócrates ter a forma certa de dar uma notícia tão pesada.
_Quem, mãe? Me fala logo, que eu já estou tendo um infarto de tão ansiosa!
_ O Rafael descobriu recentemente uma irmã por parte de pai, que estava sofrendo com leucemia. Ela teve alguns envolvimentos com drogas antes da doença, passou um tempo na Febem, e três anos antes de descobrir a doença tinha decidido mudar de vida. Há dois meses atrás ele vinha querendo conhecer a garota, então eu emprestava meu carro para ele ir até a casa dela. Ontem à noite ele pegou meu carro lá em casa, dizendo que ia visitá-la hoje.
_ E o que isso tem a ver com essa história toda? –ela falou, já prevendo a resposta. Seus olhos estavam marejados.
_ Ontem saiu o teste de DNA, que ele pediu escondido dela, que confirmou que eles são mesmo irmãos. Você sabe, né? Era difícil confiar de verdade na história dela. Descobriu também que era um doador compatível para ela, e foi até lá hoje de manhã para dar a notícia. Ela teve uma emergência médica, e ele ligou para o SAMU. Estavam à caminho do hospital quando o caminhão se chocou com a ambulância em que eles estavam, mas os noticiários erraram uma coisa: ele está vivo e passando por cirurgia na UTI agora. Tentaram ligar para você, mas o celular chamava e não atendia.
         Ela passou a madrugada gritando com médicos, querendo entrar no quarto, mas eles explicavam que o Rafael não podia receber visitas naquele momento, porque estava prestes a passar por mais uma cirurgia. Isso se seguiu por seis dias. A garota mal conseguia dormir. No máximo, cochilava na sala de espera do hospital. Comia graças aos esforços da sua mãe e de sua “sogra”. O garoto estava estável, e acabara de abrir os olhos pela primeira vez em seis dias. Podia receber visitas em duas horas. Sócrates a convenceu a voltar à sua casa, comer bem, se arrumar e voltar ao hospital no horário de visitas, porque afinal o quadro do seu amigo era estável. Quando voltou ao hospital ainda faltava meia hora para poder vê-lo.
_ Agora eu estou menos preocupada. O médico disse que ele está estável e que não parece ter tido seqüelas graves na coluna. Depois que receber alta vai recuperar todos os movimentos normalmente. – falou a mãe de Rafael, agora mais calma e positiva.
_ O que foi que eles fizeram esses seis dias na UTI? Te disseram?
_ Ele machucou demais a cabeça...
_ É, isso o Dr. Ivan me falou.
_ Depois da cirurgia ele teve uns coágulos no cérebro. As duas cirurgias foram um sucesso, graças a Deus. Agora ele está estável, deve sair da UTI em breve. O médico levou um susto quando soube que ele tinha acordado, porque a previsão era de que ele demorasse muito mais pra abrir os olhos. E a enfermeira me disse que o primeiro nome que ele lembrou foi o seu. Sabe de uma coisa, meu bem, vocês estavam meio brigados ontem... Acho que vai ser bom pra você e pra ele conversarem um pouco agora.
_ Mas eu vou depois da senhora, dona Júlia, vai visitar seu filho...
_ Eu vou ser breve. De qualquer modo, não saia daqui sem falar com ele. Meu filho te ama tanto...
_ Vou sim. Fiquei acampada aqui no hospital por causa disso.
         Depois que a mãe saiu do quarto do filho aos prantos, o médico a chamou. Cláudia sentia um certo remorso, e pedia a Deus o tempo todo que a perdoasse, porque pensando bem, Rafael nunca tinha dado a ela qualquer motivo para ter ciúmes. Pelo contrário, ela já teve muitas provas de que ele é fiel. Ao se sentar ao seu lado, ainda tinha dúvidas se aquele seria mesmo ele. Talvez a enfermeira tivesse se enganado.
_ Rafa...
_ Amor... – falou ele, quase sem forças.
_ Não fala, amor. O médico disse que quanto menos esforço você fizer, mais rápida vai ser sua melhora. – falou, tentando não chorar, o que era impossível. Ela não acreditava que aquilo pudesse estar acontecendo: ele estava totalmente deformado, inchado, mal abria os olhos. Seu corpo estava remendado, ligado por pedaços de metal e tubos por todo corpo, para injetar o soro, filtrar seu sangue ou para auxiliar na respiração.
_ Eu ia te pedir em casamento... Cadê a aliança que eu te comprei?
_ O quê? – uma pausa longa enquanto ela tentava absorver aquela frase, e ele encontrava fôlego para dizer mais alguma coisa.
_ Pergunte ao médico.
_ Eu vou perguntar. – disse ela em prantos. – Agora descansa um pouco, amor. Quando você sair daqui a gente se casa. É bom que este seja o pedido, porque a resposta é sim, tá?
_ Te amo.
_ Eu também. Vou ficar aqui todos os dias até você sair. A enfermeira já está me chamando, preciso ir.
         No dia seguinte, antes de poderem ver o Rafael, ele teve uma parada cárdio-respitarória, e o horário de visita foi suspenso, dessa vez permanentemente. Ele morreu naquela noite, após horas de cirurgias das mais diversas. No fim das contas, não importava para Cláudia o motivo da morte, porque a única coisa que sabia era que ela não se casaria com ele. Não o veria mais. Não sabia e não se interessava por responder às freqüentes perguntas sobre isso durante o velório. Também não queria questionar a justiça de Deus. De certa forma – pensava ela -, Deus foi justo, porque ela não merecia ter alguém como ele em sua vida. Afinal, desde que começou a andar com as próprias pernas, saiu com tantos homens, aprontou tanto, se desprendeu tanto do amor que, quando ele veio, ela não soube cuidar. Ninguém mais a amaria como ele. Ninguém mais seria capaz de perdoá-la – como ele fez – se a visse com outro. Na ocasião, eles completavam um ano de namoro, e aquela foi a última vez de muitas. No fundo, ela tinha ciúmes por medo que ele a deixasse – e deixou. Tinha medo que ele “desse o troco”, ou que descobrisse que não conseguia confiar mais nela, mas várias vezes e de maneiras diferentes, todos os dias, ele provava que aquele assunto ficou no passado. Talvez Deus tenha considerado injusto que ela colhesse algo que não semeou, ou talvez tivesse apenas acontecido. Ela nunca se conformaria com a sua morte, mas sabia que não podia fazer o que quisesse e se comportar de maneira imatura sem que houvesse conseqüências. Pelo resto de sua vida, guardaria o par de alianças que o médico a deu, com a frase que ela jamais havia compreendido de verdade até aquele momento: "Com todo o meu amor, Rafael".