sábado, 23 de julho de 2011

Bate Piego e Fazi Bigode

_ Como assim, Matheus? Que bigode?! – aquilo quase enlouquecia a diarista. Ela já tinha revirado todos os DVD’s possíveis e cabíveis, e o garoto continuava empreendendo, fadigado de tanto chorar, a batalha de sua vida: conseguir que Eunice colocasse o desenho que ele queria assistir.
_ Eh, môti... bati ... o telo ...aí o biúde pega ... eh.. eh ... bate o piego e fazi bigode...- e a cada negativa da moça, o garoto se enfurecia. Agora já estava mole demais para esboçar uma reação enérgica. Suspirava, frustrado, e levava a mão ao rosto.
_ Luana, você sabe que desenho é esse? Bate o prego e faz o bigode? – A adolescente olhou com cara de quem estoura um chiclete, ensaiou uma reação de deboche e com os olhos respondeu: “se vira”. “Aborrescentes!” pensou Eunice. Não poderia ser pior: o único capaz de traduzir o dialeto do pequeno Matheus, de dois anos de idade, é o seu pai, mas ainda faltava muito para ele voltar do trabalho, e tudo indicava que aquele pedaço de rebeldia com espinhas estirado no sofá simplesmente não ajudaria.
Play... e mais um show de berros e resmungos que, claro, significavam “esse não”. Se fosse o Juliedson, o filho dela, levaria umas boas palmadas para deixar de manha, mas com o filho da patroa tinha que ser tudo regado a psicologia, e meu Deus, como psicologia cansa a beleza! Por fim ela desistiu:
_ Ah, Matheus! Não sei o que é isso... Não é o Pica-pau, nem a galinha pintadinha, nem o Rei Leão...
_ É bate o piego e fazi bigode... – falou o Matheus, espalmando as mãos. Tão eloquentemente que quase a convenceu de que ela é que não sabia de nada. E quer saber? Não sabia mesmo, e tinha raiva de quem soubesse. A pilha de roupas que a esperava era imensa e não se lavaria sozinha, e quando os patrões chegassem, toda a casa deveria estar em ordem. Pensando bem, os garotos também, mas segundo sua lista de prioridades os caprichos do Matheus podiam esperar.
          Primeira semana é sempre a mais complicada. Em sua vasta experiência como diarista, Eunice sabia que se sobrevivesse a ela, teria mais uma freguesa. Ultimamente não podia se dar ao luxo de escolher – no mês que vem o Juliedson vai para uma excursão com a escola, e ela precisa garantir que ele estará bem cuidado. Fora o custo da viagem, ela precisa deixar uns trocados para Silvia – sua amiga, e professora do garoto – comprar um lanche respeitável e menos calórico para ele, e lotar sua merendeira de frutas. Ela sabia que ele não ia comer, a menos que fosse a última coisa que tivesse para lanchar. Semana passada, ela ficou sabendo pela amiga que ele negociava o lanche com os colegas: trocava as frutas por bobagens. Não bateu no garoto porque achou interessante o dom que ele tem para negócios, mas descontou tudo no almoço: verduras, salada e verduras, nada mais. De sobremesa, salada de frutas. No fim das contas, com o suspiro mais clichê do mundo - aquele que todas as mães já deram: “meu bebê podia ficar sempre desse tamanho, e não crescer nunca”- rendia-se às vontades dele (mas só de vez em quando). E Matheus ainda estava chorando. Droga! Ela é mãe. Tentou ignorar com todas as suas forças e fazer o seu trabalho, mas parecia ser algo tão insensível da parte dela que, irracionalmente, a fazia se sentir uma daquelas mocréias que batem nos filhos dos outros na creche. Nem percebeu que fez o arroz sem alho, que não colocou óleo e sal na a água do macarrão, que a carne estava levando tempero demais... Agora pronto! Quer dizer que se ela não conseguir desvendar o enigma do Matheus, não vai conseguir trabalhar!? “Decifra-me ou te devoro”, ela pensava consigo mesma, se recriminando. Que coisa ridícula, não conseguir trabalhar por algo tão frívolo...
_ Luana, tira esse trem do ouvido e vai fazer sua tarefa! – falou, tentando se concentrar no trabalho. Para que o dia de Eunice ficasse ainda mais feliz, Luana ouvia suas músicas esquizofrênicas, balbuciando um embromation esquálido, com a ponta dos pés marcando o ritmo. Sequer ouvia o mundo ao redor.
_ Luana! Luana! – foi até o sofá e cruzou os braços na frente da menina, que tirou o fone do ouvido como se estivesse prestes a ter um infarto. Ela inspirou bem fundo e expirou lentamente:
_ Pois não? -  sarcástica como sempre.
_ Você precisa fazer seu dever de casa.
_ E você precisa cuidar de sua vida. Já te ocorreu que eu não consigo pensar de barriga vazia? – touché. Depois de alguns lampejos psicóticos, Eunice contou até dez enquanto a porta-espinha a fitava. Satisfeita com o que tinha imaginado, falou ao Matheus:
_ Pede pra sua irmã colocar o filme pra você, Matheus. Ela sabe qual é.
A cara de ódio e surpresa que Luana fez lavou a alma da diarista. Matheus imediatamente se pendurou na blusa da irmã, e começou a gemer algumas palavras.
_ Ah, não! De jeito nenhum eu vou ficar aqui tentando adivinhar que filme esse moleque quer! É a sua obrigação! Eu não sou paga pra isso, você sim! Quando minha mãe chegar eu vou falar que você me maltratou, e me pôs pra fazer papel de escrava! E que deixou o Matheus sozinho aqui, chorando, e foi fazer suas coisas! É sério, cara, não é justo!- disse ela, com as espinhas quase explodindo. Eunice sabia que era um blefe, porque sua mãe a incumbira de ajudar a nova diarista com “aquilo que fosse necessário”. Completando sua vingança, ela se voltou para a mocinha, com cara de quem estoura um chiclete, ensaiou uma reação de deboche e, com os olhos, respondeu: “se vira”.


_ Não é justo, cara!.. Ai, que ódio de você, sua fulana! Vou fazer sua caveira no twitter! Você vai ver, nunca mais vai arrumar serviço! – gritava, enquanto Eunice voltava à cozinha. Portanto, de novo a cena se repetia: Luana gritava com o menino - uma voz esganiçada, estridente como uma arara – o que era isso de “bate o prego e faz o bigode”.
_ É tão bom quando os irmãos se dão bem... - falou Eunice para a panela de macarrão. Talvez isso fizesse a aborrescente ficar mais calma: cuidar de criança é relaxante... Além do que, aquele era um dia complicado para ela – aquele dia complicado de todo mês -, portanto não queria ouvir essas hipérboles de adolescente. Bastavam as dela. Não que ela gostasse de digladiar com qualquer pessoa, mas já estava passando dos limites. Desde que pisou os pés ali, a garota implicava com ela o tempo todo. Não estava maltratando o seu irmão ou ela, ou tentando roubar o marido da mãe, ou roubando os objetos da casa. Estava trabalhando! Queria somente um pouco de paz para fazer seu trabalho todo. Se isso fosse algum crime, que seu nome fosse posto em cartazes por toda a cidade, e aí sim, se a pirralha fosse... Espera um pouco. Não é possível! Ela ria-se sozinha, e repetia para si memsa: impossível, não pode ser esse. Foi até a estante da televisão, pegou o DVD com o desenho do Robin Hood e pôs o bendito para rodar. Assim que bateu os olhos na televisão, o pequeno Matheus parou de chorar. Segundos depois, estava sorrindo:
_ O biúde!!! – Eunice começou a rir.
_ Esse é o que bate o prego e faz o bigode?
_ É! – falou ele, sem tirar os olhos da televisão. A sua irmã, desconsolada com a ignorância do irmão (e não com sua própria), jogou os DVD’s no chão, pegou seu MP4 e foi para o quarto. Com cinco minutos de vídeo, o xerife da cidade de Nothingham estava prestes a pregar um cartaz em uma árvore, quando uma flecha o interceptou. Desesperado com o rosto de quem ele viu ao olhar pra trás, fugiu, e Robin Hood, com um pincel, desenhou um bigode no retrato do cartaz: o seu próprio.
_ Bate o prego e faz o bigode... – ria-se Eunice, enquanto preparava o almoço. Uma pérola para alegrar seu dia estressante, como no dia em que seu filho levou um choque (de leve) ao mostrar a língua para a geladeira.
Enquanto o vídeo passava, ela terminava de fazer o almoço, e fazia as últimas correções no tempero. Cozinhando, se perdeu nos seu próprios pensamentos, e nem percebeu quando Luana entrou na cozinha, porque estava entretida com o molho do macarrão.
_ Como foi que você descobriu? Só o papai traduz a língua do Matheus...
_ Foi só um palpite... Eu tinha colocado todos, mas depois me lembrei que não tentei aquele.
_Você ficou com raiva de mim?
_ Eu estou com raiva de tudo hoje. Desculpa se eu fui um pouco grosseira com você.
_ Você também está com raiva de tudo hoje? Eu e minha mãe ficamos “com raiva de tudo” no mesmo dia...
_ Ainda bem que ela está trabalhando, porque pensa bem: três mulheres “com raiva de tudo” no mesmo dia! – e as duas riram. E fim de papo. Era só um dia ruim. Daqueles que acontecem pelo menos uma vez ao mês. De um jeito inusitado, o Matheus ajudou a amenizar um pouco as coisas (não falei que cuidar de criança relaxa?). No restante do dia elas conversaram como duas comadres vizinhas de longa data, sobre astrologia, novela, música, política (claro que a Luana era muito mais revolucionária que Eunice), tensão pré-vestibular, e outros assuntos que não convém citar – coisas de mulheres. Enquanto o dia se aproximava do fim e os pais das crianças estavam perto de chegar, Matheus se cansou de brincar e desmaiou no sofá. Quando recebeu sua diária e acenou para a garota, Eunice e ela tinham um bom motivo para que ela voltasse: continuar um assunto que elas tinham começado (sobre o João Paulo, aquela conversa que não convém citar). Além disso, Eunice não era a melhor em muitas coisas, mas entendia química como ninguém, e sem o encanto do “dia de fúria” para embaraçar as comunicações, as conversas eram até bastante produtivas.